quinta-feira, 10 de outubro de 2024

O Pecado de Maria, Mãe de Jesus: Uma Reflexão Teológica

A figura de Maria, mãe de Jesus, ocupa um lugar central na tradição cristã, especialmente dentro da Igreja Católica e das denominações ortodoxas. Com o tempo, ela foi objeto de inúmeras doutrinas e dogmas que exaltam sua santidade e pureza, como a Virgindade Perpétua e a Imaculada Conceição. No entanto, é importante questionar essas doutrinas à luz da teologia bíblica e da compreensão da natureza humana. Maria, assim como qualquer outro ser humano, não está isenta do pecado, como afirmam os princípios que sustentam essas crenças.

 A Questão da Virgindade Perpétua

A ideia de uma concepção virginal foi construída pela História e pela Teologia ao longo dos séculos seguintes - e há variações de compreensão disso, de acordo com a denominação religiosa praticada.

Analisando essa evolução, o que parece é que para os primeiros seguidores de Cristo, aqueles que conviveram com ele e possivelmente conheceram sua mãe, esta questão não se apresentava como relevante.

A doutrina da Virgindade Perpétua afirma que Maria permaneceu virgem antes, durante e após o nascimento de Jesus. No entanto, a Bíblia apresenta diversas passagens que indicam o contrário. Em Mateus 1:25, diz-se que José não conheceu Maria "até que ela deu à luz um filho". O uso do termo "até" sugere que, após o nascimento, a relação conjugal foi normalizada. Além disso, os evangelhos mencionam que Maria e José tiveram outros filhos (Mateus 13:55-56). A ideia de uma virgindade perpetuada pode ser vista mais como uma construção teológica do que uma realidade bíblica.

O dogma da Virgindade Perpétua de Maria possui fundamento teológico baseado na Tradição da Igreja e não nas Escrituras Sagradas, que afirma claramente que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23), e que “Quando Adão pecou, o pecado entrou no mundo, e com ele a morte, que se estendeu a todos, porque todos pecaram.” (Rm 5.12). A Virgindade Perpétua de Maria foi proclamada no Concílio Regional de Latrão, em 649. O protoevangelho de Tiago, embora não seja escritura canônica, é um documento escrito no século II d.C., não muito depois do fim da vida terrena de Maria, este documento faz um grande esforço para defender a virgindade perpétua de Maria.

A Igreja Católica Romana vê Maria como “a Mãe de Deus” e “Rainha do Céu”. Os católicos creem que Maria tem um lugar exaltado no Céu, com o mais estreito acesso a Jesus e a Deus o Pai. Tal conceito não é ensinado, em lugar algum, nas Escrituras. Mas mesmo que Maria ocupasse esta posição tão exaltada, ter ou não ter tido relações sexuais não teria impedido que ganhasse tal posição. O sexo dentro do casamento não é pecado. Maria não teria, de forma alguma, se degradado por ter relações sexuais com José, seu marido. 

 A Imaculada Conceição

A crença de que Maria nasceu sem pecado original, ou seja, imaculada, também levanta questionamentos. A tradição católica baseia-se no dogma estabelecido em 1854 por Pio IX. Contudo, a Escritura Sagrada, especialmente em Romanos 3:23, afirma que "todos pecaram e carecem da glória de Deus". Esta visão universal do pecado é fundamental na narrativa cristã: todos, sem exceção, estão sujeitos à condição humana caída. Além disso, a própria Maria é retratada no Evangelho como uma pessoa que, em momentos de dúvida e questionamento, demonstrou uma necessidade de fé e confiança em Deus. Em Lucas 1:38, sua resposta ao anjo Gabriel, "sou serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra", reflete uma aceitação da vontade divina, mas não denota uma pureza isenta de dúvida ou pecado. Ao contrário, essa resposta pode ser interpretada como uma demonstração de sua humanidade. Para que Maria fosse preservada do pecado deveria haver uma conceição imaculada em cadeia em seus pais. Somente Jesus foi preservado, pois foi gerado pelo Espírito Santo no ventre de Maria sem a participação de homem algum. Já Maria foi gerada por pais naturais, numa concepção natural manchada pelo pecado. Também a santidade de Jesus não depende de sua relação com sua mãe. No evangelho de Lucas 1.46-47 está registrado o chamado Magnificat ou Cântico de Maria. Nestes versos ela exalta a Deus e o reconhece como seu Salvador, se Maria tivesse nascido sem pecado, qual seria a necessidade de um Salvador?

A expressão "A minha alma engrandece ao Senhor" é um ato de louvor e adoração, onde Maria exalta a grandeza do Senhor. Esse reconhecimento indica a humildade e a gratidão de Maria diante da grandeza de Deus e da obra que Ele está realizando por meio dela.

Quando Maria se refere a Deus como "meu Salvador", ela demonstra uma compreensão profunda da necessidade humana de salvação. Esse reconhecimento não é apenas pessoal, mas também teológico, pois implica que ela reconhece seu estado de pecado e a necessidade de intervenção divina na vida de todos. Maria não se vê como alguém que alcançou a salvação por suas próprias forças, mas como alguém que é beneficiada pela graça de Deus.

Além disso, ao chamar Deus de seu Salvador, Maria identifica-se com a condição do povo de Israel, que aguardava a vinda do Messias e a realização das promessas de libertação e redenção. Sua alegria reflete não só uma experiência pessoal, mas também a esperança coletiva de um povo que anseia pela salvação que Deus prometeu.

 A Natureza Humana e o Pecado

A teologia cristã tradicional sustenta que Jesus é plenamente divino e plenamente humano. Se Maria fosse isenta do pecado, isso poderia levar à implicação de que ela possuía uma natureza superior à humana comum. Contudo, o cristianismo afirma que todos os seres humanos são falhos e necessitados da graça de Deus para a salvação (Efésios 2:8-9). Ao considerar Maria apenas como uma serva de Deus e não como uma figura sem pecado, reafirma-se a doutrina da redenção, que é o coração do evangelho. Maria é apresentada não como uma deidade, mas como uma escolhida por Deus para uma missão específica. Sua aceitação do papel de mãe de Jesus está repleta de humildade e coragem. Isso pode inspirar os cristãos a reconhecerem sua própria condição de pecadores e a necessidade de um Salvador.

 Conclusão

A exaltação de Maria como imaculada e perpetuamente virgem não encontra respaldo suficiente nas Escrituras e pode desviar a atenção do papel central de Jesus Cristo na salvação, pois os que assim creem neste dogma passam a atribuir a Maria o papel de mediadora e intercessora acima de Jesus, o que contraria o que as Escrituras Sagradas ensinam (Jo 14.6; Atos 4.12; 1Tm 2.5-6). Ao reconhecer Maria como uma mulher comum, que também experimentou a fragilidade e os desafios da natureza humana, pode-se celebrar sua grandeza em ter aceitado ser a mãe do Salvador, sem atribuir a ela uma natureza superior àquela de qualquer outro ser humano, e sem desmerecer o privilégio que lhe fora concedido por Deus de ser o instrumento pelo qual o Salvador veio ao mundo (Gn 3.15; Gl 4.4).

Assim, a reflexão sobre o pecado de Maria não diminui seu papel na história da salvação, mas o coloca em um contexto que revela a beleza da graça divina: que mesmo os mais simples e imperfeitos são instrumentos poderosos nas mãos de Deus.